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Não houve um milagre, houve a vitória possível

Deputados do 'Jerigonza' (socialistas, Bloco, comunistas) aplaudem Antonio Costa no Parlamento Português

Daniel Oliveira

Quando o colunista conservador Vasco Pulido Valente usou pela primeira vez a expressão “geringonça” ainda o atual primeiro-ministro português, António Costa, estava a concorrer às primárias do Partido Socialista (PS) para derrubar o anódino António José Seguro. Meses mais tarde, Paulo Portas, ainda líder do CDS (direita), recuperou a palavra para caracterizar o novo governo de esquerda. O governo que tinha, de facto, uma forma estranha. Era do PS, que tinha ficado em segundo nas eleições, mas apoiado pelo Bloco de Esquerda (BE, aliado do Podemos) e pelo Partido Comunista Português (PCP). Era a primeira vez, na democracia portuguesa, que um partido que não tinha vencido as eleições liderava um governo. Mas também era a primeira vez a esquerda tinha maioria sem que o PS tivesse ficado em primeiro. A palavra “geringonça” acabou por ser adotada pela esquerda. Não era um governo de coligação – PCP e BE não entraram no governo – e não se podia falar de um entendimento parlamentar – as más relações entre o PCP e o BE não permitiram um acordo conjunto e cada partido assinou o seu com os socialistas. “Geringonça” abreviava o que seria impossível de explicar.

Desde a revolução de 1974, nunca a esquerda se tinha entendido para governar. Houve um ou outro apoio conjunto a candidatos às eleições para Presidente da República, uma ou outra coligação em autarquias. E mesmo isso, pouco. A grande clivagem, no nascimento da democracia portuguesa, fez-se entre socialistas e comunistas. Ela, mais do que a divisão entre a esquerda e a direita, é fundadora do regime. Ultrapassá-la era de uma dificuldade extrema. Só condições extraordinárias poderiam ter levado a este passo histórico que, até as negociações terminarem, foi dado como improvável pela comunicação social.

No entanto, este entendimento estava escrito nas entrelinhas da campanha eleitoral. PS, PCP e BE sentiram, nas ruas, a pressão dos eleitores para que se entendessem. Nem mais um dia com Passos Coelho, primeiro-ministro de direita que prometeu ir além da troika, diziam os eleitores de esquerda aos seus candidatos. Todos sentiram que não seriam perdoados se as tradicionais disputas à esquerda impedissem uma solução política alternativa. No fim de um debate entre Catarina Martins, líder do Bloco de Esquerda, e António Costa, líder do Partido Socialista, a primeira deixou quatro condições para participar num governo. Quase todas atendíveis. No congresso do Partido Socialista, ainda antes da campanha, foi o próprio António Costa que defendeu que o “arco da governação” não podia continuar fechado aos partidos à sua esquerda.

Mas só na noite eleitoral se percebeu que desta vez podia ser a sério. A coligação de direita tinha ficado em primeiro, com 38,5%. Claro que isso acontecia porque concorreram coligados enquanto a esquerda, que somada teve 51% dos votos e 122 dos 230 deputados, concorrera separada. Nessa noite, a comunicação social e os líderes da direita, seguindo a tradição de sempre, deram como certa a continuação de Pedro Passos Coelho como primeiro-ministro. Só que, perante o resultado, Jerónimo de Sousa, líder dos comunistas, disse a frase que marcou a futuro: “O PS só não forma governo se não quiser”. Começava a nascer a “geringonça”.

Só uma conjugação única dos astros permitiria esta solução: um povo massacrado pela austeridade e intolerante perante a possibilidade de mais desencontros à esquerda, um PS com a possibilidade de governar mas enfraquecido por não ter ficado em primeiro, um líder socialista que precisava de chegar imediatamente ao poder, a direção do PCP pressionada por sindicalistas e autarcas para não permitir que a ofensiva social e de austeridade continuasse e o facto deste entendimento só ser aritmeticamente possível se PCP e BE entrassem simultaneamente na solução. Se chegasse um deles teria havido um impasse.

Aproveitar a oportunidade

Como se explica que a direita tenha conseguido, depois das brutais doses de austeridade que ministrou ao país, ter 38%? Foi possível porque a recuperação económica começou logo em 2014, ainda Passos Coelho era primeiro-ministro. E começou como efeito da recuperação europeia e do crescimento do turismo. Este é o primeiro mito que é necessário desfazer para compreender a situação portuguesa: que foi a esquerda que recuperou, por si só, a economia. Dizê-lo é repetir um erro que destruiu o PS quando a crise rebentou – foi responsabilizado, sem ter em conta a situação externa, pela bancarrota nacional. Não foi José Sócrates (primeiro-ministro em 2011) que faliu o país, não foi Passos Coelho que impôs a austeridade, não foi António Costa que recuperou a economia. Em todos estes momentos Portugal seguiu, às vezes apenas com um pouco de atraso, as tendências europeias.

A diferença foi como cada um lidou com o contexto externo. Assim como a direita acrescentou doses de austeridade ao que já vinha de fora, o governo da “geringonça” aproveitou o momento de recuperação de forma muitíssimo diferente do que teria aproveitado Pedro Passos Coelho. As reposições de rendimentos e direitos sociais e laborais foram muitíssimo mas rápidas e profundas. E não foram acompanhadas pela liberalização das leis laborais ou privatizações, como aconselham sempre as instituições europeias e o FMI. Pelo contrário, as alterações às leis laborais, mesmo que muito tímidas, foram num sentido positivo para os trabalhadores. E até foi anulada a concessão a privados dos transportes públicos de Lisboa e Porto e parcialmente revertida a privatização da TAP (transportadora aérea).

A lista de conquistas nestes quatro anos é especialmente impressionante quando se compara com o que se passa na Europa. Alguns exemplos: aumento geral das reformas; aumento do abono de família; eliminação dos cortes no subsídio de desemprego; manuais escolares gratuitos; redução das propinas nas universidades; 35 horas semanais na administração pública e devolução de muitos cortes que tinham sido feitos a trabalhadores do público e do privado; novos escalões fiscais e fim de sobretaxas; aumento de impostos sobre património imobiliário de valor mais elevado; drástica redução do preço dos passes sociais para os transportes públicos (medida com enorme impacto social); e aumento faseado, em 20%, do salário mínimo nacional.

Este conjunto de medidas dependeu de uma situação externa muito favorável mas, ao mesmo tempo, acelerou a recuperação, porque aumentou os rendimentos disponíveis, o consumo interno, a confiança económica, o emprego, e as receitas fiscais, permitindo casar recuperação económica, devolução de direitos sociais e equilíbrio das contas públicas a níveis nunca vistos desde a entra no euro. O PIB cresceu a um ritmo que não era visto desde o início do século; o desemprego caiu de 14%, em 2014, para 6,5%, em 2019; o investimento está próximo dos anos anteriores à crise e o défice do orçamental continua a encaminhar-se para o nulo, o que corresponde a grandes superávits primários.

Mais uma vez, é preciso ter cuidado com alguns equívocos. Infelizmente, estes quatro anos não chegaram para provar que as políticas expansionistas num país periférico da UE permitem casar recuperação económica com cumprimento das metas europeias. Num período de crise, seria altamente improvável que todas estas medidas pudessem ser tomadas com superávits primários nunca vistos em Portugal. Foi a recuperação externa que o permitiu. Como as contas correram bem e as instituições europeias acreditaram que nada de estrutural dos seus dogmas ideológicos seria posto em causa por um governo apoiado por comunistas e radicais, o rating da dívida subiu, as taxas de juro desceram e o governo poupou mais de mil de milhão de euros em serviço da dívida. Não é coisa pouca.

Como a situação era boa, houve menos resistência dos agentes económicos e da Europa a aumentos dos salários mínimos (mesmo assim houve alguma), a comissão europeia não chumbou orçamentos (chegou a ameaçar) e o clima político e social foi, nos primeiros dois anos, invulgarmente favorável para um governo de esquerda. Tudo isto tornou as relações entre os três partidos muito mais fáceis e a capacidade da direita fazer oposição muito mais difícil.

Ao fim dos dois primeiros anos de governo, o conteúdo dos acordos, que correspondiam à reposição de rendimentos e de direitos, esgotou-se. A navegar à vista, começaram os atritos. No fim de mandato, os atritos transformaram-se em confronto. O recuo do PS na negociação de uma nova Lei de Bases de Saúde que retiraria poder aos grupos privados levou a um forte desentendimento com o BE e a acusações mútuas de deslealdade. E perante a aprovação, com o voto da direita, PCP e BE, da contagem integral do tempo de carreira que fora congelado aos professores durante a crise, o primeiro-ministro ameaçou demitir-se. Muitos observadores consideraram esta simulação de crise forçada, para fins eleitorais. O PS estava a cair nas sondagens por causa de um escândalo envolvendo a nomeação de dezenas de familiares de ministros para gabinetes do governo e para a Administração Pública. Esta dramatização contra uma lei que exibia “irresponsabilidade orçamental” permitia recuperar votos à direita.

Com esta crise, o PS recuperou um pouco. Até porque uma boa parte do crescimento do PS tem sido feito às custas da direita, graças ao equilíbrio das contas públicas imposto com mão de ferro por Mário Centeno, o “Ronaldo das Finanças”. Equilíbrio que, mesmo num bom momento económico, tem sido conseguido às custas dos mais baixos investimentos públicos das últimas décadas e duma degradação dos serviços públicos, sobretudo na Saúde e nos transportes coletivos. Este é o reverso da medalha do milagre português: a reposição de rendimentos e direitos e a diminuição de custos para os utilizadores dos serviços fundamentais não têm sido acompanhadas por um investimento na qualidade do Serviço Nacional da Saúde e dos transportes.

Adeus à 'geringonça'?

geringonçaCom a aproximação das eleições europeias, tem ficado claro que a estratégia de longo prazo de António Costa já não passa pela “geringonça”. António Costa tem-se afastado de Pedro Nuno Santos, o principal peão de todas as negociações com esquerda e promovido recentemente a ministro do Equipamento. O jovem rosto da ala mais à esquerda do PS é um defensor, em Portugal e na Europa, do reforço de um bloco à esquerda que rivalize com as correntes neoliberais. Pelo contrário, o primeiro-ministro está cada vez mais sintonizado com Augusto Santos Silva, ministro dos Negócios Estrangeiros. O confesso seguidor da terceira via e de Macron tem defendido que a aliança indispensável terá de ser entre europeístas para combater esquerda eurocética e extrema-direita. Este rumo, com o reforço da aliança com os liberais, incluindo Macron e os Ciudadanos, é evidente na estratégia que o PS definiu para a Europa. Há quem diga que Costa sonha com uma carreira em Bruxelas. No estado em que se encontra a esquerda na Europa, exigem-se novos aliados.

Tudo indica de que António Costa quer, neste momento, desfazer-se da “geringonça”. Para o fazer, tinha três possibilidades. Uma maioria absoluta, uma aliança apenas com o PCP e um governo de minoria, com acordos pontuais à esquerda e à direita. Os resultados das últimas eleições europeias tornaram todas estas possibilidades improváveis. O PS ficou-se pelos 33,5% e apesar de haver algumas sondagens otimistas, nada indica que isso seja possível. O PCP teve o seu pior resultado de sempre numas eleições que, por terem menos abstenção, costumam favorecer bastante um partido que tem um eleitorado mais fiel. E os dois partidos de direita foram devastados. Rui Rio, líder do Partido Social Democrata (centro-direita) aberto a entendimentos ao centro, deverá ser afastado depois das eleições legislativas de outubro. Quem vier deverá endurecer a oposição.

A queda do PCP e a subida do BE, nestas europeias, são dados importantes para um balanço rigoroso. O PCP parece estar a sofrer do abraço do urso. O seu eleitorado, com muitos reformados e funcionários públicos, parece estar a sofrer o abraço do urso. Desde que começou esta solução política, perdeu três eleições consecutivas: presidenciais, autárquicas e europeias. E nada indica que seja por os seus eleitores não gostarem do governo que ele apoia. Talvez gostem demais. O fim do cordão sanitário com os socialistas está a custar-lhe votos. O BE, mais jovem, com mais peso entre trabalhadores do privado e com mais maleabilidade tácita, tem conseguido manter a sua força eleitoral ou até ampliá-la, dependendo dos candidatos. É um partido que partilha muitos eleitores com o PS e a porosidade entre os dois pode sempre beneficiá-lo. Isso, e uma evidente dificuldade de diálogo, levam António Costa querer ver-se livre do BE. O sonho de governar só com os comunistas caiu por terra nas europeias. Nunca o PCP aceitaria manter uma aventura a dois com um Bloco de Esquerda em crescimento à solta.

Mas nas europeias abriu-se uma porta. O PAN (Pessoas, Animais, Natureza) um partido muito particular que entrou no parlamento há quatro anos, que não é nem de esquerda nem de direita, é quase exclusivamente composto por vegans, tem nos animais o centro da sua ação política mas nos últimos meses conseguiu passar a ideia de que é ecologista, saltou para os 5% nestas europeias. Parece não ser um epifenómeno e os olhos de António Costa brilham. Esta seria uma aliança sem custos. Sendo um partido de nicho e pequenas causas, bastaria dar-lhe algumas bandeiras simbólicas e estria garantido o seu apoio em tudo o que seja importante, da economia às leis laborais.

A aritmética dos votos

Seja como for, o futuro da “geringonça” dependerá da aritmética dos votos. Essa é a grande lição destes quatro anos: as alianças que podem mudar o rumo de um país – ou pelo menos travar por uns tempos a caminhada para as políticas neoliberais que dominam grande parte da Europa – dependem mais da correlação de forças do que da boa-vontade dos políticos. E mesmo depois dos eleitores da esquerda criarem, consciente ou inconscientemente, as condições para que os entendimentos sejam inevitáveis, os partidos não mudam de um dia para o outro. O PS continua a querer fazer as mesmas escolhas que levaram os seus congéneres europeus, na Alemanha ou em França, a uma crescente irrelevância. O PCP, sendo um dos poucos partidos comunistas ortodoxos que sobreviveu na Europa, continua a viver nos seus anacronismos. O BE, como partido nascido depois da crise dos partido de massas, continua a ser inconsistente. E os limites impostos por uma Europa onde os equilíbrios políticos são muito diferentes da que vivemos em Portugal e Espanha, continuam a ser o mesmos. Assim como será com a mesma moeda, tão desajustada à realidade dos países periféricos como em 2009, que teremos de enfrentar uma nova crise, quando ela inevitavelmente vier. A dívida continua insustentável, os limites do tratado orçamental continuam absurdos, a economia portuguesa continua de uma fragilidade assustadora.

Em Portugal, não aconteceu um milagre. Aconteceu uma vitória circunstancial e limitada dos que querem uma governação mais à esquerda. Que dependeu da pressão dos eleitores e só dela pode voltar a depender. E que, se afastarmos todos os mitos e olharmos com frieza, foi o melhor que a esquerda podia ter feito ter acontecido dentro do que lhe é possível. É isso que se exige: não perder oportunidades.

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