Nosso futuro está no mundo
- Este artigo pertence à revista Portugal: a magia do improvável, de eldiario.es. Leia a versão em Castelhano aqui. Torne-se um membro agora e receba nossas revistas trimestrais em casa
A história pode começar mais perto ou mais longe. Para falar de Portugal, hoje, uma boa possibilidade é recuar 50 anos e traçar os caminhos da geração que nasceu para a liberdade nas lutas estudantis dos anos 60, e que está na origem de três grandes transformações do nosso país.
Primeiro, uma revolução nos costumes, com uma mudança profunda no lugar da mulher e nas relações sociais, também com a emergência de novas famílias e a diversidade sexual e de género.
Segundo, uma abertura ao mundo, com o fim do isolacionismo salazarista e do colonialismo, a adesão à União Europeia e ao multilateralismo, a afirmação de uma vontade cosmopolita.
Terceiro, a construção de uma democracia com direitos, da participação política aos direitos sociais. Como se cantava nas ruas no tempo da revolução de Abril: “Só há liberdade a sério quando houver/A paz, o pão, habitação, saúde, educação”.
Estas três transformações são a marca de uma geração que, a partir de diferentes posições e ideologias, soube manter um rumo para o país. Portugal é, hoje, infinitamente melhor do que era em 1969.
Duas linhas atravessam estes 50 anos: um esforço continuado nas áreas da educação e da ciência. Em 1969, a escola pública era medíocre, uma das piores da Europa. Hoje, orgulhamo-nos da escola que fomos capazes de construir graças a um trabalho colectivo de todos. Em 1969, as universidades eram incipientes e praticamente não havia ciência. Hoje, os nossos jovens têm boas qualificações académicas e os nossos cientistas estão em muitos lugares do mundo, e também em excelentes instituições em Portugal.
Um país de grandes desigualdades
A educação e a ciência são as duas grandes fronteiras da liberdade. Mas Portugal conheceu, também, avanços continuados na saúde (uma das menores taxas de mortalidade infantil do mundo), no ambiente, no mar (com o alargamento da plataforma continental, 97% de Portugal será mar e só 3% terra), nas cidades, na segurança e até na solidariedade, sobretudo inter-geracional. Mais difícil têm sido os temas da economia, do trabalho (a precariedade é o grande risco para os jovens) e da justiça. E Portugal continua a ser um país com grandes desigualdades. Este é o problema maior do nosso presente.
A crise financeira de 2011-2014 foi dramática, também na nossa relação com a Europa. Mas a capacidade de resposta revelada a partir de 2015 tornou o país mais coeso, evitou os extremismos e voltou a projectar-nos no mundo. Devemos evitar euforias e, mais ainda, uma visão épica, como se tivéssemos uma missão redentora no mundo. Estas ilusões terminaram sempre mal na nossa história. Mas isso não nos deve impedir de reconhecer o contributo que podemos, e devemos, dar no plano mundial, e no multilateralismo, devido às características próprias da nossa língua e da nossa cultura. “Para nascer, pouca terra; para morrer, toda a terra” – assim se referiu o Padre António Vieira aos portugueses, no século XVII. E tinha razão.
O recuo
Gostaria de ver Portugal ainda mais envolvido, no plano internacional, na agenda da paz e dos direitos. Temos condições para dar um importante contributo ao mundo, como bem se demonstra na acção do secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, e do director-geral da Organização Internacional das Migrações, António Vitorino, mas também dos directores-gerais da FAO e da Organização Mundial do Comércio, todos de língua portuguesa.
Em vez da “revolução nos costumes” assistimos, agora, a um recuo nos temas da diversidade, com o crescimento das indústrias da crença, fábricas de fundamentalismos contra a razão e a ciência (a negação das alterações climáticas, a recusa das vacinas…). Precisamos, mais do que nunca, de uma ciência aberta, que promova o acesso livre ao conhecimento, a cultura científica e uma maior ligação entre os cidadãos e a ciência.
Em vez da “abertura ao mundo” assistimos, agora, ao regresso dos nacionalismos, das identidades excessivas, por vezes mesmo obsessivas, à construção de muros, à valorização de “comunidades” onde ninguém pode entrar e das quais ninguém pode sair. Os problemas do mundo são globais, das alterações climáticas às migrações ou aos desafios do digital. Não os resolveremos com respostas locais ou nacionais. Precisamos, mais do que nunca, de um multilateralismo activo e diligente, centrado nos 17 objectivos do desenvolvimento sustentável.
Reforçar a participação democrática
Em vez da “democracia com direitos” assistimos, agora, a um re cuo dos direitos humanos em muitas regiões do mundo, com uma inaceitável concentração da riqueza, mais desigualdades e a precarização do trabalho. Precisamos, mais do que nunca, de reforçar a participação democrática, a presença nos lugares de decisão, das cidades às instâncias internacionais. Para isso, temos de valorizar o comum, não no sentido identitário ou comunitário (aquilo que somos), mas na perspectiva de uma conversa e de uma acção em comum (aquilo que fazemos uns com os outros).
Nestes três desafios estão a educação e a ciência. Devemos educar, sempre, para a maior comunidade possível, isto é, para a humanidade. Devemos sempre pensar a ciência como a melhor linguagem, talvez mesmo a única que nos resta, para construir a paz com os outros e com a terra.
No dia em que conseguirmos escrever a Declaração Universal dos Deveres Humanos, respondendo ao convite de José Saramago, em 1998, teremos de começar pela educação e pela ciência. Porque na educação se definem as desigualdades individuais e na ciência as desigualdades entre países e regiões.
Navigare necesse est – É com esta velha máxima latina, Navegar é preciso, que Stefan Zweig abre o seu livro sobre Fernão de Magalhães: “Apenas enriquece a humanidade, de maneira duradoura, aquele que alarga os conhecimentos e reforça a consciência criadora”.
Vale a pena recordar a primeira viagem de circum-navegação, iniciada há precisamente 500 anos. Nessa época, Portugal teve um papel importante no primeiro processo de globalização. Agora, tudo é muito diferente. E, no entanto, o mundo está a chamar-nos a novas responsabilidades: pelo nosso lugar no mundo – entre o Norte e o Sul, entre a Europa e a América e África; pela nossa língua –a mais falada no hemisfério sul; até pela nossa dimensão, que nos coloca mais num lugar de mediação que de poder.
Não me interessa a equidistância, mas sim o compromisso com os direitos humanos. Para isso, precisamos de independência e de liberdade. E não o conseguiremos num mundo profundamente desigual, com a riqueza nas mãos de poucos e o poder dos dados (os famosos big data) nas mãos de ainda menos. Quero pensar Portugal como um país que pode promover, no mundo, os desígnios da geração de 1969.
Não podemos prever o futuro, mas podemos preparar-nos para um futuro que ainda não conhecemos. Preparar é educar, conhecer, criar, é cultivar o gosto pela liberdade, permitir que cada ser humano faça o seu caminho. Sem partida não há viagem. Agora, é a vez da geração de 2019, nascida nos primeiros anos do milénio. Pertence-lhes continuar. O nosso futuro é no mundo. Uma vez mais.