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Esplendor na fronteira

Esplendor en la frontera

Antonio Sáez Delgado

Professor da Universidade de Évora e tradutor —

Vivo numa cidade fronteiriça. Saio todos os días de casa às nove da manhã, faço uma hora de caminho de carro e chego ao trabalho às nove em ponto. Algumas vezes, se for com pressa, às nove menos cinco. Esta espécie de viagem no tempo, disfarçado de diferença horária, é vivida diariamente pelas centenas de habitantes da Estremadura que vivem em Espanha e trabalham em Portugal. Saio às nove da manhã de Badajoz e chego à Universidade de Évora, no Alentejo, às nove em ponto. Ou menos cinco. A zona que rodeia essa fronteira, no troço estremenho, tem um nome simbólico de alta tensão: a Raia. Os habitantes dessa Raia aprenderam a viajar entre um território e o outro procurando o melhor de cada lado, numa afortunada dupla nacionalidade cultural que é provavelmente o maior privilégio de viver na região.

Num texto escrito há um século, Fernando Pessoa defendia que finalmente os países se tinham dado conta de que uma fronteira, apesar de separar, também unia; e que se duas nações vizinhas são duas pelo facto de serem duas, quase que podem moralmente ser uma só por serem vizinhas. Passaram quase cem anos e a obstinada história continua a trazer-nos um tema que resiste ferozmente à erosão da passagem do tempo: Portugal e Espanha, dois países de costas e que se olham com receio, desconfiados ou presumidos, arrogantes ou com desdém.  No entanto, nada como raspar a pele da realidade para provar que essa imagem de vizinhos desentendidos hoje já não faz sentido e, inclusivamente, questionar-nos se alguma vez existiu realmente.

Se lermos alguns dos maiores autores da Península (de Antero de Quental a Saramago, de Clarín a Ramón Gómez de la Serna, passando por Joan Maragall, Vicente Risco, Eça de Queirós, Emilia Pardo Bazán, Unamuno ou o citado Pessoa, entre tantos outros) facilmente fazemos uma antologia de textos que nos falam com fascínio do vizinho ibérico, da sua identidade e idiosincrassias. Se há termo que se repete com frequência ao longo das reflexões sobre Portugal e Espanha, o mesmo é “distância”. Já no último quarto do século  XX, o poeta Ruy Belo, professor em Madrid, escrevia que a capital espanhola era uma das cidades do mundo mais distantes de Lisboa, ao passo que Luis Buñuel, em O meu último suspiro, afirmava que Portugal era para os espanhóis um país mais afastado que a Índia.

O tema, tão atrativo do ponto de vista da identidade dos territórios vizinhos, por vezes rivais, deixa de existir nos dias de hoje. O boom turístico português, de certa forma impulsionado pela crise económica e que pôs Portugal nas bocas do mundo, também tem repercussões no universo cultural, concretamente ao nível literário.

Nunca se traduziram tantos autores de ambos os estados  (incluindo autores do panorama cultural catalão, muito seguido em Portugal), nunca houve nos meios de comunicação uma atenção ao “outro” tão equilibrada (durante décadas, em Portugal publicavam-se com frequência notícias vindas de Espanha, ao passo que em Espanha era raro encontrar informação sobre Portugal), nem nunca se viram tantos visitantes espanhóis por todo o território luso (não apenas Lisboa e Porto) como neste momento.

Estamos a viver, por assim dizer, o início de uma época de ouro. O festival Correntes d’Escritas, que se realiza todos os anos no norte de Portugal, reúne a cada edição dezenas e dezenas de escritores e editores do universo ibérico, com salas a abarrotar de público. Do outro lado da raia, a Feira do Livro de Sevilha deste ano foi dedicada a Portugal e as grandes editoras espanholas publicam os autores que mais se destacam  numa atualidade que, se considerarmos a grandíssima literatura portuguesa, se prolonga há pelo menos um século: Fernando Pessoa, Eça de Queirós, José Saramago, António Lobo Antunes. Nasceu até em Madrid uma pequena editora com uma coleção exclusivamente dedicada às letras portuguesas, La Umbría y la Solana, cujo catálogo vai dos clássicos modernos a autores atuais como Dulce Maria Cardoso, autora de O retorno, um êxito entre os leitores espanhóis.

Permitam-me fechar com uma nota pessoal. Quando era adolescente e pensava no “estrangeiro” como uma espaço mágico e atrativo onde aconteciam outras coisas e se falava outra língua, esse lugar tinha um nome: Portugal.

Naquela altura de descoberta, iniciática, Lisboa era a capital de todos os países do mundo e a fronteira (a Raia) que atravessávamos era o que nos separava do resto da civilização. Essa linha que separava a realidade do sonho fazia com que as pessoas falassem outra língua e pensassem com outras palavras. Hoje, Portugal continua a ser para mim, e cada vez mais, esse território genuíno e autêntico onde encontramos uma cultura (no sentido amplo: da literatura à música, da gastronomía à paisagem) admirável, de uma forma de viver a vida talvez menos apaixonada, mas também,  possivelmente por isso, mais haroniosa, serena, sóbria e reflexiva.

Ser português significa hoje estar a sair de uma crise indigna para a vida dos cidadãos e olhar o futuro com olhos de esperança: um país estruturado que tenta reverter os efeitos da desertificação do interior e que procura aproximar-se da média europeia nos salários (um dos aspetos onde mais há por fazer), com uma educação na vanguarda do continente e uma sociedade e cultura invejáveis, de onde temos, sem dúvida, muito que aprender.

Uma possível bússula para essa viagem são os livros dos atuais autores do panorama literário portugués: Lídia Jorge, Gonçalo M. Tavares, Valter Hugo Mãe, José Luís Peixoto, João Tordo, Afonso Cruz, Patrícia Reis. Pelas suas palavras, é possível aprender a ver Portugal por dentro e por fora, à distância e com o coração, um reto ao qual é fácil sucumbir, agora sim, com toda a paixão. 

Traducción: Vera Sepúlveda 

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